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Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição


fundo azul com bolinhas coloridas na lateral direita. título 23 de agosto dia internacional em memória do tráfico de escravos e a sua abolição. imagem de mãos quebrando correntes. no rodapé está o logo do instituto modo parités.

Pesquisa e organização do texto: Sergio Gomes


O dia 23 de agosto é considerado o Dia Internacional em Memória ao Tráfico de Escravos e sua Abolição. A data faz alusão à memória de homens e mulheres que se revoltaram na ilha de São Domingos em 1791 e com isso fizeram do Haiti a primeira república sob o comando de descendentes de africanos. No Brasil, a escravidão durou cerca de 300 anos e foi abolida legalmente em 1888, quando a escravidão foi banida do Brasil e de quase todo o mundo. Porém, milhões de pessoas ainda sofrem com ela e, embora ilegal, estima-se que a escravidão moderna traga um lucro anual 150 bilhões de dólares no mundo inteiro aos criminosos que a praticam. Por “escravidão moderna” entende-se: obrigar uma pessoa ou grupo de pessoas a realizarem atividades contra sua vontade utilizando de práticas de intimidação como, ameaça, violência física, violência psicológica, retenção de documentos pessoais, detenção e, muitas vezes em condições indignas e sem pagamento ou registro formal.


A escravidão moderna é diferente daquela praticada no Brasil nos períodos colonial e imperial. Nessa época era permitido por lei que uma pessoa fosse propriedade de outra, mas há outras diferenças como os valores gastos, na época da escravidão antiga os valores investidos para a compra de um escravo eram altos. Hoje as vítimas não são compradas, muitas são crianças e adolescentes, são aliciadas e os patrões costumam gastar apenas com o transporte até sua propriedade.


Outro fator que diferencia a escravidão antiga e a escravidão moderna é o fato de que características étnicas eram levadas em conta - os escravos eram negros ou indígenas e hoje a escravidão não leva isso em conta e as pessoas escravizadas são aquelas em situação de pobreza ou miséria. As semelhanças estão na intimidação e nas medidas punitivas aplicadas às vítimas.


No mundo existem mais de 48,5 milhões de pessoas submetidas à escravidão moderna, segundo o Índice Global de Escravidão, publicado em 2016 pela Fundação Walk Free, da Austrália. A Walk Free aponta as principais atividades que utilizam mão de obra escrava.


Como principais tipos de trabalho que empregam mão de obra escrava, a Walk Free aponta:


  • Indústria da pesca, onde milhares de pessoas são forçadas a trabalhar em barcos de pesca, podendo permanecer anos sem ver a costa. As vítimas desse tipo de atividade relatam que quem é pego tentando escapar pode ser morto ou atirado ao mar.

  • Trabalhos vinculados às drogas, que empregam inclusive trabalho escravo infantil.

  • Exploração sexual, que faz cerca de 4,5 milhões de vítimas, sendo uma a cada quatro delas, menor de idade.

  • O relatório da Walk Free aponta ainda que muitas crianças ao redor do mundo são obrigadas por criminosos a pedir esmolas nas ruas.

  • Grande parte da escravidão moderna acontece em propriedades particulares como casas e fazendas, longe da visão do público.

  • A maioria das pessoas submetidas à escravidão moderna são atraídas por falsas promessas de emprego e melhoria de vida, mas acabam sendo levadas a lugares isolados e tendo seus documentos retidos pelos criminosos e são atrelados a uma dívida, que deve ser quitada com “trabalho gratuito”.

Ainda segundo a pesquisa, a pobreza, a falta de oportunidades e a desigualdade no mundo inteiro são os principais fatores que levam pessoas a serem vítimas da escravidão moderna, mas há outros fatores também como a xenofobia, o patriarcado e a discriminação de gênero.


O trabalho escravo moderno ainda utiliza castigos físicos ou a morte como formas de punição, alojamentos em condições precárias, muitas vezes sem mesmo camas e armários. Outra característica é a longa jornada de trabalho que pode ser superior a 12 horas diárias. Na escravidão moderna as vítimas costumam trabalhar sem alimentação adequada e suficiente, sem equipamentos de proteção e sem agua potável. A escravidão moderna acontece em todas as partes do mundo, incluindo países ricos da América do Norte e União Europeia, gerando um lucro anual de cerca de 150 bilhões de dólares, o que é um montante maior que o lucro das 4 empresas mais rentáveis do mundo. Boa parte dos 48,5 milhões de pessoas em situação de escravidão ao redor do mundo estão na Ásia. Do total de pessoas escravizadas no ano de 2016, 58% vivem em cinco países: Índia, China, Paquistão, Bangladesh e Uzbequistão.


imagem de mapa mundi colorido com dados de vítimas de trabalho forçado por região.

gráfico com as informações: vítimas de trabalho forçado por tipo. trabalho forçado imposto pelo estado 2 200 000 (10%). exploração sexual como trabalho forçado 4 500 000 (22%) exploração 14 200 000 (68%)

O Brasil e a escravidão moderna

Em 1995 o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a admitir a existência de trabalhos forçados em seu território e adotou a terminologia “trabalho escravo” para designar essas atividades e instituir políticas públicas que tratam do crime e procedeu com um conjunto de esforços visando a sua erradicação. Comecemos com alguns números:


  • Entre 1995 e 2020, mais de 55 mil pessoas foram libertadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil, segundo o Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), vinculada à Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (SEPRT) do Ministério da Economia.

  • As trabalhadoras e os trabalhadores libertados são, em sua maioria, migrantes internos ou externos, que deixaram suas casas para a região de expansão agropecuária ou para grandes centros urbanos, em busca de novas oportunidades ou atraídos por falsas promessas.

  • A maioria dos trabalhadores libertados são homens, têm entre 18 e 44 anos de idade e 33% são analfabetos.

  • Os dez municípios com maior número de casos de trabalho escravo do Brasil estão na Amazônia, sendo oito deles no Pará.

  • Tradicionalmente, a pecuária bovina é o setor com mais casos no país. No entanto, há cerca de dez anos intensificaram-se as operações de fiscalização em centros urbanos, até que em 2013, pela primeira vez, a maioria dos casos ocorreu em ambiente urbano, principalmente em setores como construção civil e de confecções.

Um dos setores que no Brasil faz mais uso da mão de obra escrava é o setor de carvoarias que também com frequência utiliza trabalho infantil, uma vez que as crianças costumam ser usadas por terem facilidade para acessar o interior dos fornos. O trabalho em carvoarias é insalubre por diversos motivos, como a inalação de gases tóxicos, fuligem e a exposição a altas temperaturas.



Fiscalização do Trabalho em carvoaria com trabalhadores em situação análoga à escravidão
Fiscalização do Trabalho em carvoaria com trabalhadores em situação análoga à escravidão


Trabalho escravo e a indústria de confecções


mulher segurando bebê em uma fábrica de costura

A escravidão moderna é uma prática conhecida na produção de roupas e veio a público na virada do século, quando foi revelado o esquema criminoso usado por grandes magazines: terceirizavam a produção e contratavam oficinas que escravizavam imigrantes bolivianos, visando a redução de custos.


Os casos ganharam repercussão internacional. Muitas empresas mudaram suas práticas. Hoje, as ocorrências de trabalho escravo são menos frequentes. Se houve avanço no enfrentamento do trabalho escravo na indústria da moda, questões igualmente graves seguem sem solução. A produção de roupas é uma das mais opressivas e violentas atividades laborais exercidas por mulheres.


A cadeia produtiva da moda está amparada em uma lógica distópica. De um lado, glamour de uma peça bem-acabada e que dará, a quem for usá-la, deleite, conforto, cultura e identidade. Do outro lado, a costureira, que tem uma vida desesperadora, marcada por doenças graves, privação de liberdade, violência de gênero, assédio moral e sexual.

Marques Casara, que estuda a cadeia da moda há mais de 20 anos, recentemente compilou informações para uma pesquisa em desenvolvimento. Alguns dados dizem respeito às condições de trabalho das mulheres costureiras.


O complexo setorial compreendido por Têxtil, Vestuário, Couro e Calçados emprega cerca de 2,7 milhões de pessoas. Mais de 70% são mulheres: 1,96 milhão de trabalhadoras. Dentre as mulheres trabalhadoras, 58% são informais, o que dá mais de 1,1 milhão de mulheres. Destas, 80% não contribuem para a Previdência.


Os dados acima nos mostram uma tragédia humanitária. Essas mais de 1 milhão de mulheres sem registro são vítimas invisíveis. Não são alcançadas pelas políticas públicas, não aparecem nos relatórios empresariais, são desconhecidas para quem está do outro lado da cadeia produtiva e compra as roupas costuradas por elas. As costureiras informais ou escravizadas nunca trabalham menos de 14 horas diárias.


As doenças ocupacionais começam a aparecer logo nos primeiros anos de atividade. Também são comuns doenças provocadas por insalubridade.


“Em São Paulo, uma das técnicas de investigação para descobrir oficinas clandestinas de costura, é acompanhar o aumento dos casos de tuberculose nos bairros. Se há aumento súbito de casos, muitas vezes é por conta da chegada de oficinas clandestinas, que constantemente migram para fugir da fiscalização. Essas mulheres costuram para a lojinha da esquina, para as marcas de médio porte, para grifes caras e para magazines instaladas em shopping centers.”, diz o estudo.


A escravidão moderna e a agropecuária.

Parece que entramos em um túnel do tempo e estamos de volta ao período colonial ou imperial, para algumas pessoas desavisadas pode até soar estranho que ainda hoje existem pessoas escravizadas no Brasil, mas infelizmente essa gravíssima violação dos direitos humanos é um dura realidade no Brasil do século XXI.


O ano de 2022 é o aniversário de 134 anos da Lei Áurea, pela abolição da escravatura, mas isso está sendo comemorado com um gosto amargo, pois esse ano pode ser aquele com maior número de pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão desde 2013.

Segundo o Radar SIT, Painel de Informações Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, 500 trabalhadores foram resgatados até maio de 2022. O número deste ano foi impactado pelo resgate de 273 trabalhadores em uma única ação realizada no mês de janeiro em uma usina de cana-de-açúcar de Minas Gerais. O estado lidera o desabonador ranking do trabalho escravo no Brasil. Segundo o painel de informações e estatísticas SIT, Goiás está em segundo lugar e o Pará é historicamente o estado com maior número de resgatados do trabalho escravo, com 13.775.


Historicamente, a maior parte dos casos de trabalho escravo acontece na região rural, e a pecuária é o setor onde o problema é bem evidente e documentado. De acordo com dados do Governo Federal sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), mais da metade dos casos de trabalho escravo flagrados no Brasil entre 1995 e 2020 aconteceu nas atividades relacionadas à pecuária.


O relatório Monitor do Repórter Brasil se aprofunda em diversos estudos de caso, incluindo um envolvendo seis trabalhadores - quatro deles migrantes paraguaios, resgatados de condições análogas às de escravo em 2019 da fazenda Rodoserv IV, no município de Caracol, no Mato Grosso do Sul. Na propriedade os trabalhadores tinham que se abrigar em barracas improvisadas com retalhos de lona e galhos reunidos por eles mesmos. Sem acesso à água potável ou a banheiros, quatro dos funcionários da fazenda passaram dez anos submetidos a essas condições. Ainda de acordo com o relatório Monitor a fazenda forneceu diretamente gado para uma das gigantes do ramo de carnes, a JBS, maior empresa do ramo frigorífico do mundo.


A escravidão moderna encontra terreno fértil no Brasil, onde a cultura escravocrata ainda está enraizada nas mentes e nos costumes de uma boa parte das classes mais abastadas. No Brasil e talvez no mundo, a escravidão moderna se vale de um tripé de sustentação perverso que é: impunidade, pobreza e lucro. Para acabar com a escravidão moderna é preciso atacar esse tripé. Temos que garantir condições de vida e de trabalho, saúde, segurança, habitação e educação para que essas pessoas submetidas a trabalho análogo à escravidão possam sair dessa condição de pobreza e vulnerabilidade.


Fontes:


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