19 de abril - Povos originários lutam por dignidade há mais de 500 anos
Denúncias de crescente assassinatos de lideranças indígenas, queimadas e invasões criminosas, invasão autorizada de religiosos para contatos com povos isolados voluntariamente, falta de demarcação de terras e de assistência médica, aumento dos casos de contaminação pelo Covid-19. Estas são algumas das gigantescas lutas atuais dos povos indígenas, e que se originaram desde a chegada dos portugueses à então Pindorama, nome dado à “terra livre de males” na língua tupi-guarani. Por outro lado, em contraponto aos desafios, há um tímido, mas real, crescimento de representatividade na política, o acesso a cursos universitários, a conquista de voz e de canais de denúncia nacionais e internacionais, que somam forças para que os povos originários brasileiros tenham acesso aos direitos que lhes garantam dignidade e respeito à sua cultura.
Quando o português Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil em 1500, estima-se que os povos originários, ou povos indígenas que viviam no atual território nacional totalizavam no mínimo 5 milhões de pessoas. O Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que esse contingente foi reduzido para menos de 820 mil (cerca de 0,5% da população brasileira).
Do total de pessoas indígenas, ainda segundo o IBGE, mais de 500 mil vivem em zonas rurais, enquanto o restante habita as cidades. Esse total também é subdividido em mais de 300 etnias, que praticam mais de 200 idiomas diferentes. Entre as maiores etnias, estão os Tikúna, Guarani-Kaiowá e os Kaingang. Apesar do grande número de dialetos existentes, a maior parte das pessoas indígenas no Brasil fala o português, devido ao contato da maioria dos povos com o restante da população.
A língua portuguesa também constitui uma ferramenta política para as nações indígenas, já que, por meio dela, podem reivindicar seus direitos, como a preservação dos seus espaços e a construção de escolas e estradas para as suas aldeias. Sob o ponto de vista constitucional, aliás, a pessoa indígena é considerada brasileira e cidadã, com direito à alimentação, saúde, educação, infraestrutura e políticas públicas de manutenção das suas atividades culturais. Existe ainda o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), que dispõe sobre as relações do Estado e da sociedade brasileira com a população indígena, embora ainda precise de atualização de acordo com a Constituição Federal de 1988, que atesta a capacidade da pessoa indígena para ingressar em juízo na defesa de seus interesses, independente da representação de qualquer órgão do Estado.
A busca por essa e outras conquistas tende a ser cada vez mais efetiva com uma representatividade crescente nas diferentes esferas da sociedade. Na política, podemos tomar como exemplo a deputada federal Joênia Wapichana, primeira mulher indígena eleita para o cargo no país, em 2018, e vencedora do Prêmio das Nações Unidas (ONU) de Direitos Humanos no mesmo ano – prêmio também concedido a personalidades como o pastor norte-americano Martin Luther King e o ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela. Após defender um caso de disputa de terras na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Joênia se tornou a primeira advogada indígena a comparecer perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2013, ela foi nomeada primeira presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. “Quando eu levo a palavra como primeira mulher indígena formada no Brasil, é justamente para dar um incentivo, para que essa minha imagem possa ser reproduzida, multiplicada dentro dos povos indígenas”, afirmou Joênia em entrevista ao ONU News, ao saber da premiação. “São cidadãos, pessoas que querem fazer parte da tomada de decisões de muitos processos que estão sendo discutidos dentro dos países, são defensores de direitos, de conhecimentos, de vários saberes. A gente vai fazer também com que as crianças possam viver este exemplo. E eu entendo que este reconhecimento vai servir também para nos proteger”, acrescentou a deputada.
Ainda em 2018, a Assembleia Legislativa de São Paulo passou a contar com a primeira deputada estadual indígena, a educadora e antropóloga Chirley Pankará. Ela contribui com as pautas dos povos indígenas em contexto urbano no Estado, caso dos Pankararu, Pankararé, Pankará, e aldeias Guarani Mbya, como em Parelheiros e Jaraguá. A deputada também atua em prol do movimento indígena, como no caso da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, realizada em agosto de 2019, em Brasília, e que reuniu cerca de 2 mil mulheres de 113 povos indígenas do Brasil.
Quanto à proteção ao indígena à qual se referiu a deputada Joênia Wapichana, a sua importância cresceu ainda mais no último ano. Segundo um levantamento preliminar da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que só contabiliza mortes de indígenas por conflitos de terra, 9 foram assassinados no Brasil em 2019, dos quais 7 eram figuras de liderança – um crescimento de 250% em relação a 2018. A organização observa que nenhuma sequência de anos apresentou uma diferença tão grande na morte de lideranças quanto de 2018 para 2019. “É lamentável que em pleno século XXI indígenas ainda estão sendo assassinados por questões territoriais, por defenderem seus direitos”, afirmou Paulo Tupiniquim, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em entrevista ao jornal Público.
A demarcação de terras indígenas é uma das questões históricas e geográficas mais polêmicas do Brasil. A Constituição Federal define as Terras Indígenas como todas as áreas permanentemente habitadas por índios, sendo elas utilizadas para as suas atividades produtivas e também para a preservação de suas culturas e tradições. Portanto, mais do que simplesmente a área de moradia direta, as terras indígenas devem envolver todo o espaço utilizado por essas pessoas para garantir sua sobrevivência, incluindo áreas de caça e extrativismo. As áreas indígenas do Brasil são de propriedade da União, de modo que os recursos naturais existentes dentro de seus limites pertencem única e exclusivamente aos habitantes desse território. Além disso, somente com autorização legal da Fundação Nacional do Índio (Funai) é possível chegar a essas áreas não sendo um membro pertencente às etnias indígenas, sendo vedado, portanto, o acesso irrestrito.
Lideranças e observatórios, porém, denunciam com frequência a anuência da Funai a abusos, invasões e situações de violência e desrespeito. A mais recente luta agora é contra a Medida Provisória 190, conhecida como MP da Grilagem, e que está para ser votada na Câmara dos Deputados, que facilita as invasões e desmatamentos da Amazônia e de territórios indígenas.
A conquista constitucional deve-se muito à mobilização, há 27 anos, na Assembleia Nacional Constituinte, em defesa da Emenda Popular da União das Nações Indígenas. No dia 04 de setembro de 1987, o porta-voz do emergente Movimento Indígena fez discurso histórico que logrou reverter a conjuntura política anti-indígena naquela legislatura do Congresso Nacional. O pronunciamento contundente do defensor Ailton Krenak, com a presença de espírito do gesto de luto, foi ato decisivo para a aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 pelos parlamentares constituintes.
Veja o vídeo no link: https://www.youtube.com/watch?time_continue=116&v=kWMHiwdbM_Q&feature=emb_title
De acordo com dados de setembro de 2019 do Instituto Socioambiental (ISA), no Brasil existem 722 terras indígenas em diferentes fases do processo de demarcação e, dessas, 486 estão regularizadas. Muitas vezes, são realizados recursos judiciais e disputas por parte de agronegociantes, agricultores e outros com o objetivo de garantir para si o uso das terras. Com isso, mesmo com a demarcação sendo concluída, o trâmite leva muitos anos para se concretizar. Em alguns casos, grupos de posseiros, grileiros e fazendeiros entram em conflitos com os indígenas em torno da disputa territorial. Frequentemente, os limites impostos pela demarcação não são respeitados, ocorrendo a invasão de uma área de proteção patrimonial.
“Não tenho dúvidas sobre os avanços conquistados, além dos novos e dos velhos desafios que os povos indígenas do Brasil enfrentam na atualidade”, afirma o antropólogo indígena Gersen dos Santos Luciano, no livro “O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje”, publicado em 2006. Segundo Luciano, um desses desafios é como pensar políticas para os índios urbanos, cuja demanda está em franco crescimento, além da questão da terra, que, observa, cada dia mais está ficando insuficiente para assegurar sobrevivência adequada e digna.
Por outro lado, o antropólogo reitera seu otimismo quanto ao futuro da pessoa indígena no Brasil. “Hoje, quando vejo os povos indígenas cada vez mais presentes em todos os aspectos da vida nacional – cultura, agenda de governo, mídia nos seus diversos segmentos, pesquisa, vida universitária, esportes, política parlamentar e partidária – começo a acreditar que a questão indígena pode ter não somente maior visibilidade e relevância na vida nacional mas, sobretudo, um espaço próprio de autonomia e de liberdade para que se decida como viver nesse mundo atual”, conclui.
Lua crescente
Por meio de políticas afirmativas como o Vestibular dos Povos Indígenas, criada no Paraná em 2006, foi que a Dra. Myrian Veloso, ou Krexu, como a chamam na aldeia Rio das Cobras, que significa Lua Crescente, formou-se como médica pela faculdade de medicina da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) em 2013. Durante os três primeiros anos, atuou como médica na sua aldeia, um povoado com pouco mais de 3 mil habitantes situado na margem esquerda do Rio Guarani, em uma região atravessada por dois afluentes do rio Iguaçu, os rios da União e das Cobras.
Krexu pertence ao povo Guarani ou, mais especificamente, ao Mbyá-Guarani, uma nação com cerca de 27 mil indígenas distribuídos em várias aldeias pelo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. Na aldeia de Myrian, os Mbyá-Guarani convivem com outra etnia, os Kaingang. Krexu fala as duas línguas, além do português.
Em entrevista ao site Medscape, veículo especializado na área da saúde, Myrian relata o quanto valoriza o período inicial de atuação na aldeia Rio das Cobras. "Aprendi a não usar medicamentos excessivamente, e a trabalhar com muito pouco recurso. Não ter sempre acesso a exames complementares faz com que a gente desenvolva mais as habilidades clínicas. Meu diferencial hoje é saber trabalhar com problemas que alguns profissionais desconhecem, sem recursos financeiros, sem exames.", afirma a médica.
Myrian agora está no quarto ano de especialização em cirurgia cardiovascular no Instituto de Neurologia e Cardiologia (INC), instituição de referência no atendimento de pacientes neurocirúrgicos, neurológicos e cardiológicos de alta complexidade na capital paranaense. Mesmo vivendo e trabalhando na cidade, porém, durante as férias Krexu sempre volta à aldeia de onde saiu e também faz atendimento médico por lá.
Segundo o Censo 2017 da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 56.700 indígenas brasileiros foram matriculados no ensino superior do país, número que representa 0,68% dos 8,3 milhões de estudantes matriculados nessa etapa. Vale aqui citar a Lei de Cotas para a educação (Lei nº 12.711/2012), que determina a reserva de vagas para pessoas indígenas de acordo com a porcentagem dessas populações nas unidades federativas.
Hoje, “Dia do Índio”, o Instituto Modo Parités presta homenagem às centenas de milhares de pessoas descendentes dos povos originários desta terra que amamos e que denominamos de Brasil. Que seus direitos como cidadãos sejam respeitados, que sua cultura seja valorizada e que possamos agradecer e aprender com eles por sua resistência e sabedoria! Contem conosco em suas causas!